Tanto
quanto a santidade e a consagração a Deus, João Batista trouxe no bojo de seu
ofício profético a marca da coragem e da determinação com as quais exortava o
povo, sem acepção de pessoas. No princípio de suas pregações, mostrou oposição
à crassa hipocrisia dos fariseus e saduceus, contra os quais trovejava (Mateus 3.7-8).
"Raça de víboras, quem vos induziu a fugir da ira vindoura?
Produzi, pois, fruto digno de arrependimento."
A
corrupção que imperava em meio aos coletores de impostos, assim como a
inquietude que rondava os soldados foram, da mesma sorte, publicamente desafiadas por João Batista (Lucas 3.10-14). Tão arrebatadora foi sua autoridade
diante das multidões que muitos se convenciam de que o rude ermitão poderia não
ser apenas mais um dentre tantos profetas, mas o próprio Messias (Lucas 3.15),
aquele sobre quem brilharam as luzes proféticas desde a Antiguidade. No
entanto, a possível tentação de usurpar uma posição espiritual para a qual não
fora designado não encontrou guarida no fiel coração de João Batista. Diante
das constantes indagações populares acerca de sua suposta messianidade, João
contundentemente afirmava: "(...)Eu não sou o Cristo, mas fui enviado como seu precursor" João 3.28. "(...) Após mim vem aquele que é mais poderoso do que eu, do qual
não sou digno de, curvando-me, desatar-lhe as correias das sandálias." Marcos 1.7
João Batista não parece ter conhecido limites em sua fidelidade para com
o Penhor. Nem mesmo os pecados praticados pelo despótico Herodes Antipas foram
privados de sua execração pública. Desprezando as terríveis conseqüências de
sua ousadia, o devoto não poupou severas admoestações ao adultério vivido por
Herodes com a mulher de seu irmão, Herodias, e por outras tantas crueldades
cometidas pelo soberano, conforme vemos em Mateus 14.3.
Embora o tirano prezasse intimamente a João (Marcos 6.20), isso não o impediu de lançá-lo no cárcere da isolada Fortaleza de Maquiros, na costa oriental do
Mar Morto. Ali, durante os excessos de sua festa natalícia e no devaneio
protagonizado pela sensual filha de Herodias, cujo nome, segundo Flávio Josefo, era Salomé, mandou-o decapitar, em 29 A.D.
A coragem e a determinação mostradas pelo profeta em seu ministério
foram lembradas de maneira especial pelo próprio Senhor Jesus, no testemunho
de Mateus 11.7-11.
"(...) Que saístes a ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento?
Sim, que saístes a ver? Um homem vestido de roupas finas? Ora, os que
vestem roupas finas assistem nos palácios reais.
Mas, para que saístes? Para ver um profeta? Sim, eu vos digo, e muito
mais que profeta.
(...)
Em verdade vos digo: Entre os nascidos de mulher, ninguém apareceu maior
que João Batista (...)"
É de se supor que os seguidores de João Batista, especialmente aqueles
que, como André, se tornaram mais tarde discípulos de Jesus, manifestaram em
seus ministérios as marcas indeléveis da intrepidez com que o profeta abraçou
a causa messiânica. Como veremos mais adiante, as lendas que relatam as
aventuras apostólicas de André, ainda que muitas vezes romantizadas, são uma
evidência de seu empenho como pregador das boas novas de Cristo.
O período
de maturação espiritual experimentado em companhia de João Batista é visto por
McBirnie como um tempo em que se lançaram alguns dos alicerces do futuro
ministério de André.
"Após ouvir a mensagem de João e contemplar as multidões que, como
rebanhos, deixavam as cidades da Judéia em busca de auxílio espiritual e, após
assistir João no batismo daqueles que desejavam morrer para sua velha natureza
e viver uma nova vida, André finalmente equipou-se para o evento que iria, em
breve, mudar diametralmente sua vida."
Sem embargo, o clamor jubiloso de seu mestre diante do até então desconhecido
nazareno, fez com que André entendesse que Se manifestara, afinal, aquele de
quem João Batista tornara-se o notório precursor (João 1.29-30).
"(...) Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo! É este a
favor de quem eu disse: Após mim vem um varão que tem a primazia, porque já
existia antes de mim."
O ministério de João Batista ficara para trás. Para André e alguns de
seus amigos chegara o momento para o qual foram treinados e pelo qual aguardaram
tão ansiosos; era a hora de seguir sem reservas a verdadeira luz que,
vinda ao mundo, ilumina a todo o homem (João 1.9).
Deixando a árida paisagem do Deserto da Judéia, André se dispôs a seguir
os passos de Jesus nos arrabaldes da Gaiiléia. De tal sorte marcante foi a
impressão inicial causada por Jesus, que lá chegando não tardou em buscar por
seu irmão e informar-lhe sobre algo que todo ouvido em Israel ansiava
escutar: Achamos o Messias! (João 1.41).
A cronologia da vocação dos discípulos é, de certo modo, confusa, já que
os evangelistas não cuidaram de estabelecer divisões de tempo exatas para os
fatos que relataram. Assim, ao que parece, André, como discípulo que fora de
João Batista, manteve contato com Jesus antes da formalização de seu
discipulado. McBirnie propõe um esclarecimento para os meandros cronológicos
que separam os primeiros encontros de André com Jesus e sua definitiva chamada
como discípulo.
"Nesse estágio, André ainda não era exatamente o que se pode chamar
de um discípulo de Jesus. Assim como os demais, André era meramente Seu
seguidor, ou seja, um acompanhante interessado em observar à distância o que
se passava. Jesus, então, tomou consigo a Pedro, André, Filipe e João e
dirigiu-se de volta a Nazaré. Entrementes, foi submetido aos quarenta dias de
tentação no deserto, após Seu batismo. A seguir, eles acompanharam Jesus a uma
festa de casamento em Cana da Galileia, a apenas dez quilômetros de Nazaré. Em
Cana puderam testemunhar a realização de Seu primeiro milagre. Jesus os
conduziu, então, a uma verdadeira jornada evangelística por toda Galileia e,
mais tarde, por Jerusalém onde O viram 'purificar' o Templo. Contudo, durante
este período, nenhum deles era ainda discípulo de Jesus. Mais tarde, todos
retornaram à Galileia, voltando ao seu antigo ofício de pescadores. Não sabemos quanto tempo se passou até que Jesus, certo dia, voltasse a Cafarnaum, nas
margens do Mar da Galileia, e lá encontrasse a André e Pedro."
Ao contrario do que acontece com seu irmão Pedro, infelizmente,
não são muitos os registros bíblicos da passagem de André
como discípulo de Jesus. Isso, com efeito, nos impossibilita uma projeção dos
traços gerais de sua personalidade, visto que o legado posterior da tradição
cristã nem sempre é digno de crédito.
A parte os versículos que narram sua chamada, ao lado de Pedro, às
margens do Mar da Galileia e das passagens que o inserem nas listas apostólicas,
raramente encontramos alguma menção de sua participação no rol dos discípulos.
Em Marcos 13.3-4 André aparece, ao lado de Pedro, Tiago e João no Monte das
Oliveiras, inquirindo Jesus a respeito dos assustadores vaticínios que acabara
de ouvir sobre o templo e a cidade de Jerusalém. Noutra ocasião, minutos antes
da miraculosa multiplicação dos pães (João 6.8-9), vemo-lo apresentando a Jesus
alguém que dispunha de míseros cinco pães e dois peixes, na busca de uma
solução para a fome que já começava a incomodar a multidão presente. Na
passagem de João 12.20-22, André é um dos que conduzem ao encontro de Jesus
alguns gentios, prosélitos do judaísmo, que ansiavam conhecê-Lo.
Em face da escassez de informações bíblicas sobre seu perfil e suas
ações enquanto discípulo, a tradição medieval traçou o contorno de André a
partir do testemunho de João 1.40-42, definindo-o como o pai das missões apostólicas.
Tal assertiva constitui, obviamente, mais uma dentre as várias caricaturas
apostólicas formadas cora o passar dos séculos. O fato de o discípulo ter se
apressado em relatar a Pedro seu descobrimento, conforme nos conta o
evangelista, não faz dele necessariamente um grande referencial de missionário
cristão. Todos aqueles em cujos corações Jesus causou semelhante impacto
fizeram o mesmo com seus amigos e parentes, visto que a expectativa messiânica
era algo que inundava os corações na Israel naqueles dias. Além do que, as
lendas cristãs creditam mais empenho a apóstolos como Pedro, João, Tomé e Judas
Tadeu do que propriamente a André.
Sem embargo, nosso apóstolo parece ter realmente experimentado grandes
oportunidades de espalhar a semente da Palavra por diversas regiões da
Antiguidade. A seguir, veremos alguns dos relatos mais interessantes dessas
tradições.
As missões no leste europeu e o martírio em Patras, na Grécia
Embora alguns autores apontem André como um dos anciões que permaneceram
na liderança da Igreja de Jerusalém, outros têm por certo que o apóstolo deixou
ainda cedo a Cidade Santa rumo às missões evangelísticas no estrangeiro. Se
isso for verdade, é possível que tal decisão tenha sido fruto da perseguição
que se instaurou na cidade durante os primeiros anos da Igreja. Existe,
entretanto, certa dificuldade de se conciliar essa partida de André nessa época
com o registro lucano de Atos 8.1.
"Naquele dia levantou-se grande perseguição contra a Igreja em Jerusalém; e todos exceto os apóstolos, foram dispersos pelas regiões da
Judéia e da Samaria."
De qualquer modo, em 44 A.D. nova pressão se levantou contra os cristãos
de Jerusalém. Desta vez, a violenta morte de Tiago Maior e o aprisionamento de
Pedro, sob ordens de Herodes Agripa, podem ter convencido alguns dos
apóstolos, entre os quais André, a buscarem novos campos para sua lavoura
espiritual. Suspeita-se que foi por essa mesma época que Pedro, após ser
miraculosamente solto, por fim decidiu estender seu apostolado para além dos
limites da Judéia (Atos 12.3-17).
Uma das mais fortes tradições acerca do trabalho missionário de André,
endossada pelo historiador Eusébio (História Eclesiástica III, 1,1)
diz respeito ao sul da Rússia, especialmente às regiões outrora conhecidas
como Cítia e Partia, próximas ao Mar Negro. Por testemunhos tradicionais como
esse, André foi adotado como patrono da Igreja russa.
Outra forte tradição afirma que André exerceu parte de seu ministério em
algumas regiões da Ásia Menor, onde se sabe que houve grande intensidade
evangelística durante a era apostólica. Em Éfeso, teria compartilhado urna
revelação de Deus com o amigo e apóstolo João, contribuindo para a elaboração
de seu Evangelho. Esses relatos são, em suma, confirmados pelo martirológio da
Igreja Ortodoxa Russa, que apresenta a seguinte proposta para as jornadas
pós-bíblicas de André.
"Após o Pentecostes, André ensinou em Bizâncio, na Trácia, na
Rússia, em Epiros e no Peloponeso. Em Amisos, converteu no templo os judeus
locais, batizando-os e curando seus enfermos. Edificou ali uma Igreja e
deixou-os em companhia de um sacerdote. Na Bitínia, pregou a palavra, curou os
enfermos e expulsou as bestas-feras que os perturbavam. Suas orações destruíram
os templos pagãos e aqueles que se opunham a sua palavra acabavam oprimidos e
atormentados em seus corpos até que fossem por ele curados.
Em Sinope, orou pelo encarcerado apóstolo Matias, de quem fez cair as
cadeias, abrindo-lhe as portas da cela. Certa multidão espancou André,
quebrando-lhe os dentes, cortando seus dedos e deixando-o como morto num monte
de estrume. Jesus, então, apareceu-lhe e o curou, exortando-o que mantivesse o
bom ânimo. Quando as pessoas o viram, no dia seguinte, ficaram sobremodo
maravilhadas e creram. André fez também ressurgir dentre os mortos o único
filho de uma mulher. Como profeta, predisse a grandeza de Kiev, como fortaleza
da cristandade."
Com efeito, a maior parte dos relatos sobre as missões de André engloba
a Palestina, Ásia Menor, Macedônia, Grécia e as regiões próximas ao Cáucaso.
Entretanto é para a cidade de Patras, na Grécia, que convergem as mais antigas
narrativas referentes ao seu apostolado pós-bíblico. Ali, ao evangelizar e
converter Maximila, esposa do Procônsul local, André teria sido martirizado
numa cruz em forma de "X", conforme o relato que veremos a seguir. Em
virtude dessa tradição, a cruz em "X" passou a ser conhecida como
Cruz de Santo André.
A obra apócrifa Atos e Martírio do Santo Apóstolo André, supostamente escrita pelos "bispos e diáconos das igrejas da Acaia" apresenta alguns trechos muito interessantes sobre a lendária entrevista do apóstolo com o procônsul daquela região, Egates, e seu posterior suplício por mãos desse governador romano.
O confronto entre o santo e o magistrado pagão teria se iniciado a partir do constrangimento que Egates impusera aos crentes daquela região, tentando fazê-los retornar à adoração idolátrica. Vejamos algumas passagens desse relato.
"Esta fé temos aprendido do abençoado André, apóstolo de nosso
Senhor Jesus Cristo, cuja paixão nós, tendo presenciado com nossos olhos, não
hesitamos em testemunhar, mesmo que limitados em nossa capacidade.
Tendo o procônsul Egates vindo à cidade de Patras, começou a constranger aqueles que haviam crido em Cristo a adorarem os ídolos. A este, o bendito
André, dispondo-se apressadamente, disse: 'Exorto-te que, sendo juiz dentre os
homens, conheças Aquele que é teu Juiz, que está nos céus e que, uma vez o
conhecendo, adore-o e, tendo-o adorado, faças voltar teus pensamentos daqueles
que não são verdadeiros deuses.'"
Mesmo reconhecido pelo procônsul, André - segundo a lenda - não suprime
sua audaciosa reprimenda e acrescenta.
"Os imperadores romanos nunca conheceram a verdade. Quanto a esta,
o Filho de Deus, que veio para salvar os homens, manifestamente ensinou que
estes ídolos não apenas não são deuses, mas representam na verdade os mais
desprezíveis demônios, hostis à raça humana. São eles que ensinam os filhos dos
homens a desobedecerem a Deus, de forma que Este não Se volte para eles e não
os ouça."
Ameaçado por Egates de ser torturado e punido com crucificação por se
negar terminantemente a sacrificar aos deuses, o apóstolo é detido enquanto
aguarda sua execução. Uma multidão oriunda das adjacências de Patras, ouvindo o
que se sucedera com André, revolta-se contra a decisão do governador e
tenciona libertá-lo à força.
O evangelista, porém, tendo proposto em seu coração que aquele era o
momento de testemunhar com o próprio sangue a fé em seu Mestre, adverte-os
dizendo.
"Não transformeis a paz de nosso Senhor Jesus Cristo em sedição e
em levante diabólico. Porquanto, meu Senhor, quando foi traído, tudo suportou com paciência. Não murmurou nem alçou sua voz, tampouco ouviu-se nas ruas seu
clamor. Portanto, vós, da mesma sorte, mantende-vos em silêncio e em paz, não
impedindo meu martírio. Antes, preparai-vos também, de antemão, como atletas
do Senhor que sois, para que possais vencer as ameaças, com uma alma que não
teme o que possa fazer o homem (...). Pois, este perecimento não é para ser
temido, mas sim aquele que é eterno."
Após atravessar a noite no cárcere admoestando a multidão que o tentara
libertar, André é conduzido ao tribunal diante de Egates. Os primeiros raios
do Sol ainda não haviam aquecido a manhã, quando as primeiras palavras do
magistrado romano se dirigem ao apóstolo, na vã tentativa de dissuadi-lo da
doutrina pela qual se dispusera a morrer.
"Considero que tu, refletindo ao longo da noite, voltaste teus pensamentos da tolice, tendo desistido da comissão de Cristo, para que
permaneças entre nós, não lançando fora os prazeres da vida. Pelo que, seria
grande estupidez enfrentar os sofrimentos da cruz por quaisquer que sejam os
propósitos, entregando-se à mais humilhante de todas as punições."
Sendo, pois, convidado pelo procônsul a retratar-se de sua fé e a
estimular os demais a fazerem o mesmo, o santo decididamente replica.
"Ó filho da morte e palha preparada para o fogo eterno, ouvi-me a
mim, o servo e apóstolo de Jesus Cristo. Até agora tenho contigo gentilmente
conversado acerca da perfeição da fé, a fim de que tu, após ter sido exposto à
verdade, pudesses te tornar perfeito como seu defensor e, assim, desprezar os
ídolos vãos e adorar apenas a Deus, que está no céus. Entretanto, já que
permaneces na mesma impudência e pensas que me assustas com tuas ameaças, traga
sobre mim, pois, aquilo que julgas ser a maior de todas as torturas."
Enfurecido por essa audácia sem precedentes, o procônsul ordena que
André seja entregue nas mãos dos verdugos, a fim de ser castigado com grande
severidade. Perturbado, entretanto, com a determinação do santo, Egates renova
sua oferta de clemência ao já afligido apóstolo, se este abjurar sua fé
publicamente. Como sua recusa se mostrasse definitiva, Egates determina a
imediata crucificação do evangelista.
Conta-nos a lenda que uma multidão de cerca de vinte mil cristãos seguia
inconsolável o condenado em direção ao local da execução. Após André ser içado
no madeiro, um certo Estratocles, discípulo seu, percebendo que os executores
se afastaram, aproximou-se a fim de consolar seu mestre em seu sofrimento. Ao
encontrá-lo sorrindo diante do summum suplicium -como era
chamada a crucificação — o fiel lhe fala:
"Por que razão estás sorrindo, ó André, servo de Deus? Teu sorriso
nos faz lamentar e chorar, porquanto nos encontramos privados de ti."
Ao que André lhe responde:
"Não devo eu rir-me, meu filho Estratocles, diante do esgotamento
das estratégias de Egates, através das quais pensava vingar-se de nós? Nada
temos com ele, tampouco com seus planos. Ele não pode ouvir, pois se pudesse,
teria aprendido, por experiência, que o homem que pertence a Jesus não pode ser
punido."
Como o sofrimento do apóstolo se prolongasse por mais de quatro dias, a
população de Patras voltou-se enraivecida contra Egates e pressionou-o
fortemente a libertar André. Temeroso de que uma negativa pudesse transformar
a situação num levante de grande proporção, o procônsul decide, a contragosto,
atender os rogos da multidão.
Ao aproximar-se de cruz sobre a qual André pendia agonizante e tendo
atrás de si a multidão que bradava jubilosamente, Egates ouve surpreso a
veemente recusa do santo em aceitar sua repentina e duvidosa demonstração de misericórdia.
Insistindo para que os presentes não o impedissem de glorificar a Deus
com aquele suplício, André entrega seu espírito e parte para o Senhor, diante
do olhar carregado da multidão que dele aprendera acerca do Evangelho.
Maximila, a nobre esposa de Egates, que também se tornara uma cristã por
intermédio de André, ao saber que o santo havia partido para o Senhor,
dirige-se apressadamente para o local da crucificação e, após auxiliar na
retirada do corpo, ocupa-se de sua preparação, untando-o com custosas
especiarias e oferecendo para o sepultamento um espaço em seu próprio jazigo.
Conta a lenda que Maximila, tendo decidido abandonar o procônsul, deixou-o sobremodo perturbado, de modo que este planejava enviar a César pesadas acusações contra sua esposa e os demais cristãos da cidade. Contudo, na calada da noite, enquanto elaborava os detalhes do documento, Egates, terrivelmente oprimido por demônios, lançou-se de grande altura, vindo a despedaçar-se em frente ao mercado público de Patras.
Conquanto outros relatos estabeleçam o martírio do apóstolo entre 68 e 69 A.D., esta lenda encerra a descrição da saga de André em Patras, datando de modo impreciso sua passagem ali:
"Essas coisas se passaram no dia anterior às calendas de dezembro, na província da Acaia, na cidade de Patras, onde seus maravilhosos feitos permanecem até o dia de hoje, para a glória e o louvor de nosso Senhor Jesus Cristo, a quem seja a glória para todo o sempre. Amém."
O escritor medieval Dorman Newman também confirma o ministério do
apóstolo na Grécia.
"Santo André dirigiu-se à Cítia e a Bizâncio, onde fundou igrejas.
Por fim, rumou a Patras, uma cidade da Acaia, onde encontrou o martírio. Aegas,
procônsul da Acaia, após intensa discussão, ordenou a André que abandonasse sua religião, sob pena de ser torturado até a morte. Ambos imploravam pela retratação alheia: Aegas, tentava persuadir Andréa não perder sua vida e este,
por sua vez, buscava convencer o magistrado a não perder sua alma.
Após suportar valentemente severa punição, André foi atado - e não pregado - a uma cruz, a fim de que se prolongassem seus estertores. Ali, exortou os
cristãos e orou, saudando aquela cruz como uma oportunidade de apresentar ao
seu Mestre um honroso testemunho. André permaneceu por dois dias sobre a cruz,
admoestando a quantos dele se aproximassem. Embora alguns importunassem o procônsul a fim de reverter aquele trágico quadro, o apóstolo continuava
suplicando ao seu Senhor que lhe permitisse selar o testemunho da Verdade com
seu próprio sangue."
Patras também aparece como ponto derradeiro de suas missões no
livro The First-Called Apostle Andrew, do reverendo ortodoxo
Hariton Pneumatikakis (citado em The Search for the Twelve
Apostles, p. 84-85).
"A santa tradição afirma que o apóstolo André percorreu as regiões
mais baixas do Cáucaso (presentemente, a Geórgia), vindo a anunciar a Palavra à
raça dos citas, nas distantes regiões do Mar Cáspio. Dirigiu-se, então, a
Bizâncio (atual Istambul), onde ordenou a Eustáquio como Bispo local.
André foi encarcerado e apedrejado, vindo a padecer muito por amor de
Cristo. Em Sinope, sofreu a terrível ameaça de ser devorado vivo por canibais.
Não obstante, continuou firme em sua tarefa apostólica de ordenar bispos e
espalhar o Evangelho do Salvador Jesus Cristo.
De Bizâncio dirigiu-se à Grécia, em sua principal jornada evangelística.
Viajou pela Trácia e Macedônia até atingir o Golfo de Corinto, em Patras. Foi
ali que André anunciou o Evangelho pela última vez.
Egates, o governador de Patras, irou-se sobremodo com a pregação de
André, ordenando sua apresentação perante o tribunal local, numa atitude que
visava erradicar dali a fé cristã. Como o apóstolo resistisse ao tribunal,
Egates condenou-o a morte por crucificação. André permaneceu atado à cruz por
espessas cordas durante três dias, sendo estas suas últimas palavras: Aceita-me
ó Cristo Jesus, Aquele a quem vi, a quem amei e em quem subsisto; recebe em paz
meu espírito em Teu Reino sempitemo'."
E razoável que Patras, na Acaia, como um importante centro portuário,
tenha realmente sido alvo da pregação de algum dos doze, conforme dizem as
tradições gregas. Paulo, vindo de Rodes, aportou ali em sua viagem para a
Fenícia (Atos 21.1-2). Não sabemos exatamente quanto tempo demorou-se em Patras,
mas é pouco provável - considerando-se seu raro ímpeto evangelizante - que
tenha desperdiçado a oportunidade de anunciar Jesus naquele local, mesmo que
por poucas horas. Cidades próximas como Corinto, Cencréia, Tessalônica e Bereia
foram intensamente evangelizadas não apenas por Paulo, mas também por Timóteo,
Silas e Apoio nos dias do procônsul Gálio (Atos 18.1-18; 19.21).
Localizada na parte oriental da baía de Patraikos, a pouco mais de
duzentos quilômetros de Atenas, Patras já em tempos apostólicos, destacava-se
como uma das mais importantes cidades da província romana da Acaia. Conheceu o
apogeu econômico no segundo século de nossa era; porém, duzentos anos depois,
sua decadência foi inevitável, com o rápido desenvolvimento de Constantinopla,
antiga Bizâncio. Principal contato comercial da península grega com o oeste
europeu, o porto de Patras movimentava anualmente consideráveis quantidades de
mercadorias que abasteciam toda a península do Peloponeso.
Se a tradição grega acerca do ministério de André em Patras estiver
correta, é possível que dali o Evangelho tenha se disseminado para o interior
da própria Acaia e para outras regiões do mundo antigo, através de mercadores
que se valiam daquele concorrido porto mediterrâneo.
Atualmente, Patras, uma das mais belas cidades gregas, ainda conserva
vestígios da presença do apóstolo André através daquela que é considerada a
mais imponente Igreja de toda a Grécia, a Catedral de Santo André. Dedicada à
memória do apóstolo, a nova construção foi erigida ao lado da antiga Igreja de
Santo André, levantada entre 1936 e 1943, na qual se diz estar o sítio onde
André fora crucificado.
Teria André estabelecido a Igreja de Bizâncio?
Sem embargo, a tradição ortodoxa tenta estabelecer uma base de sustentação
para a origem apostólica da Igreja de Bizâncio, mais tarde transformada em
Constantinopla, a ornamentada capital do Império Romano do Oriente. O nome de
André — assim como o de João — figura entre aqueles que supostamente deixaram a
semente apostólica naquela pequena cidade trácia que se transformaria, dali a
dois séculos, num dos mais importantes centros urbanos da Antiguidade, como nos
conta W. Cureton em seu Ancient Syriac Documents (p.34).
"O célebre texto 'O Ensino dos Apóstolos' (Didascalia
Apostolorum), composto entre o final do segundo século e o princípio
do terceiro e preservado em tradução siríaca, atesta a apostolicidade da
Igreja de Bizâncio do seguinte modo: Bizâncio e toda a terra da Trácia,
incluindo as regiões até o grande rio, cuja desembocadura mantinha afastados os
bárbaros, receberam o sacerdócio das mãos apostólicas de Lucas, que lá erigiu
uma Igreja e exerceu o sacerdócio, assim como o ofício de governador e administrador.
Contudo, a apostolicidade lucana da Igreja de Bizâncio é descrita dentro
do contexto mais abrangente das atividades dos apóstolos João e André. Éfeso,
Tessalônica e toda a Ásia, assim como a terra dos coríntios e a
circunvizinhança da Acaia receberam o sacerdócio apostólico das mãos de João, o
Evangelista. Nicéia, Nicomédia e toda a terra da Bitínia e Gótia, incluindo as
regiões adjacentes, receberam a destra apostólica do sacerdócio pelas mãos de
André, o irmão de Simão Cefas. (...)
Essa tradição foi revitalizada ao tempo do cisma de Acácio (484-519
A.D.), durante o qual o confronto entre os tronos da velha e da nova Roma
conduziu a um debate sobre os direitos canônicos do trono de Constantinopla,
sob a ótica da compreensão ocidental da apostolicidade dos tronos patriarcais.
É tradicionalmente aceito que, durante a visita do papa João a Constantinopla
(525 A.D.), foi proposto a ele, com a assistência do historiador Procópio, a
tradição atribuída a Doroteu de Tiro, referente à ordenação de Eustáquio como
bispo de Bizâncio pelo apóstolo André.
Essa tradição exerceu grande influência sobre a literatura relativa às
atividades apostólicas de André, influência esta que sobressai a qualquer discussão,
já que pode ser confirmada pela impressionante difusão do culto ao apóstolo a
partir do princípio do sexto século, ao longo de todas as igrejas do ocidente e
do oriente que experimentaram alguma real conexão com Constantinopla.(...)
A narrativa sobre a relação do trono de Constantinopla com João, o Evangelista
foi desenvolvida ao longo das tradições ligadas ao apóstolo André. (...) Esta
projeção oficial da apostolicidade joanina da Igreja de Constantinopla
pressupõe uma tradição preexistente, evidenciada pela afirmação do patriarca
ecumênico Inácio, durante o segundo Concilio de Constantinopla (681 A.D.). A
assertiva de Inácio foi uma resposta aos delegados papais, os quais se
declaravam representantes do trono apostólico naquele conselho (...): 'Eu
também ocupo o trono do apóstolo João e do protocletos André'."
Mesmo que tenham servido, em sua maior parte, apenas para sustentar as
pretensões de supremacia do patriarcado de Constantinopla, as lendas sobre a
atuação direta ou indireta de André em Bizâncio devem ser consideradas com a
devida atenção. Afinal, essa localidade do sétimo século a.C, embora nos dias
de André nem de longe resplandecesse o fulgor da futura Constantinopla, se
tornara um importante acesso à Europa pelo oriente, com seu importante porto no
Bósforo, especialmente aos que procediam da Bitínia, do Ponto e da Ásia Menor e
que se destinavam às províncias romanas da Trácia, Moésia, Macedônia e Ilíria.
Essa condição geográfica, de tão estratégica, não deve ter passado
despercebida aos primeiros missionários cristãos. Ademais, Bizâncio estava mais
próxima de Éfeso — a base das ações missionárias de João e, talvez, de André -
do que outras cidades alcançadas no primeiro século como Tessalônica, Beréia,
Corinto e Filipos.
A destruição que sofreu por seu levante armado contra o imperador Sétimo
Severo em 196 A.D., deixa claro que a Bizâncio do período imediatamente
pós-apostólico era uma cidade de importância ascendente dentro do Império
Romano.
A tradição apostólica não apresenta variações muito drásticas ao
retratar o ministério de André. Basicamente, crê-se que o apóstolo deixou a
Palestina ainda cedo e se dirigiu ao oriente, especialmente às regiões ao redor
do Mar Cáspio e Mar Negro, como a Partia e a Cítia. André pode ter se tornado,
destarte, mais um dentre os doze a evangelizar as regiões próximas ao sul da
Rússia e o oriente europeu. Por outro lado, em seu rumo para o oeste, há
suspeitas de que se reuniu temporariamente à Igreja em Éfeso, junto ao grande
apóstolo João, em cuja companhia, segundo algumas lendas, estabeleceu
posteriormente o bispado de Bizâncio. Quanto ao martírio de André, batizado
comoProtocletos (gr. o primeiro a ser chamado) pela tradição, são
muito * fortes as informações que apontam Patras, na Grécia, como local de sua
execução, e a crucificação em "X" como a forma em que se processou.
Os restos mortais
Julgando-se pelas tendências da narrativa tradicional, parece que as
relíquias do apóstolo André permaneceram, de algum modo, ligadas ao eixo
Patras-Istambul-Roma. O rev. Hariton Pneumatikakis (citado em The
Search for the Twelve Apostles, p.85) acrescenta alguns importantes
detalhes sobre o tema:
"Uma cristã de nome Maximila tirou da cruz o corpo de André e
sepultou-o. Quando Constâncio, filho do imperador Constantino, tornou-se o imperador,
ordenou que se conduzisse o corpo de André até a Igreja dos Santos Apóstolos,
em Bizâncio (Istambul), onde repousou sobre um altar. A cabeça de Santo André,
no entanto, permaneceu em Patras.
Em 1460 A.D., a cabeça do apóstolo foi levada para a Itália e colocada
na Igreja de São Pedro, para maior proteção, após o avanço turco sobre
Bizâncio. Ali permaneceu até o ano de 1964, quando o Papa Paulo VI determinou
seu retorno à Sé Episcopal de Patras. Três representantes do Papa acompanharam
a cabeça, colocada sobre um relicário e conduzida pelo Cardeal Bea a partir da
Basílica de São Pedro. Ao chegar ao destino, a peça foi retornada ao Arcebispo
Metropolitano Constantino, que ainda hoje aguarda."
Mary Sharp, em seu A Travellers Guide to Saints in Europe (p.
15) propõe outro destino para a ossada do apóstolo.
"As relíquias de Santo André: A cabeça encontra-se na Igreja de São
Pedro em Roma; outras peças em Sant/Andrea ai Quirinal, em Roma, e o restante em Amalfi. Os restos foram roubados de Constantinopla em 1210 e levados para a
Catedral de Amalfi, próxima a Nápoles. Em 1462, o então Papa Pio II decidiu
transferir a ossada craniana do apóstolo para a Catedral de São Pedro em
Roma."
Em seu livro SacredandLegendaryArt (p.238), Anna
Jamerson traz à luz mais alguns fatos interessantes acerca do destino de parte
dos restos mortais de André, durante a Idade Média:
"Ao tempo em que Constantinopla foi tomada, sendo as relíquias de Santo André por conseguinte dispersadas, foi verificado por toda a
cristanda-de um grande e entusiástico interesse pela vida desse apóstolo.
Previamente honrado pela Igreja como o irmão de São Pedro, o apóstolo André já
havia desde o passado se tornado foco de grande admiração.
Filipe de Burgundy (1433 A.D.), pagando um alto custo, adquiriu para si
parte das preciosas relíquias, que consistiam basicamente em alguns pedaços de
sua cruz. Este, ao fundar sua nova ordem de cavaleiros, estabeleceu-a sob a
proteção do apóstolo. Em seu preâmbulo, a ordem demonstrava o propósito de
reavivar a honra e a memória dos argonautas. Assim, seus cavaleiros passaram a
usar como insígnia a Cruz de Santo André."
Dentre os restos mortais dos apóstolos, os de Santo André são reputados
como dos mais genuínos, devido a relativa clareza histórica de seu percurso,
desde os primórdios da Igreja até o presente, envolvendo as citadas cidades de
Patras, Bizâncio, Roma e Amalfi.
Desde 1964 as relíquias de Santo André descansam no interior de uma
antiga Igreja ortodoxa grega em Patras, na Grécia. A ossada foi devolvida por
Roma dentro de um rico relicário de ouro trabalhado naquilo que se supõe ter
sido a forma da face do apóstolo. Esse objeto, entretanto, foi roubado não
muitos anos depois de sua chegada àquela cidade. O novo relicário, construído
pelos próprios ortodoxos, por questões teológicas não copia formas humanas e,
embora tenha sido trabalhado em prata e não em ouro, foi preciosamente
adornado.
Abraços e fique na paz do Senhor Jesus Cristo.
Neander Silvestre.