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Desse discípulo, cujo nome significa literalmente Filho de Talmai, muito pouco se sabe, do ponto de vista bíblico.
Outra tradição, não menos curiosa, conecta as origens do
apóstolo à casa real egípcia dos Ptolomeu. Nenhuma das três hipóteses,
infelizmente, vai muito além da simples conjectura.
Elias de Damasco, escritor cristão do século IX, foi o
primeiro autor de que se tem notícia a identificar Bartolomeu com Natanael,
personagem levado a Cristo por Filipe, como vemos em João 1.45,46. Sobre essa
questão, o saudoso escritor britânico John D. Jones em seu livro The Apostles
of Jesus (p-75), esclarece:
"Nada havia de incomum no fato de um apóstolo possuir
dois nomes. Simão era também chamado Pedro; Levi era conhecido na Igreja como
Mateus e um outro dentre os doze se regozijava em ser conhecido por três nomes:
Lebeu, Tadeu e Judas! Não há, portanto, a priori, qualquer improbabilidade
quanto à sugestão de que o sexto apóstolo, de igual modo, possuísse dois nomes,
especialmente quando lembramos que Bartolomeu (Bar-Tohnai), assim como
Bar-Jonas, tratava-se apenas de um nome patronímico ou, ainda, de um
sobrenome."
Vejamos
se há, de fato, alguma outra razão bíblica para a associarmos o quase
desconhecido Natanael com o discípulo de nome Bartolomeu. Natanael é um nome
que aparece mencionado exclusivamente no Evangelho de João e, assim mesmo, em
apenas duas ocasiões: no primeiro capítulo (João 1.45-51) - onde temos sua
vocação - e, timidamente, no último (João 21.2). Ora, se todos os vocacionados no
capítulo inicial desse evangelho (André, João, Pedro e Filipe) se tornaram,
mais adiante, discípulos de Jesus, temos na chamada de Natanael uma forçosa
sugestão de que ele também veio a se tornar um dos doze. Se assim não fosse,
seria deveras difícil compreender porque João - no início de seu evangelho
-dedicou tanta atenção a alguém sem íntima ligação com a vida de Jesus e de
Seus seguidores.
Se o primeiro capítulo de João torna provável o discipulado
de Natanael, o último faz disto um fato acima de qualquer dúvida. Ali,
acompanhando Pedro, João, Tiago e Tomé em seu antigo ofício, Natanael é citado
pelo evangelista como um dos discípulos (João 21.2), ao lado dos quais
testemunhara as gloriosas aparições do Cristo ressurreto na Galiléia.
Contudo, se Natanael foi de fato um dos doze, com qual deles
seria mais razoável identificá-lo? Não haveria nada que vinculasse esse nome
com qualquer um dos apóstolos, não fosse por um pequeno detalhe que veremos a
seguir. Uma rápida leitura em três das quatro citações que contêm a listados
apóstolos (Mateus 10.2-4; Marcos 3.16- 19; Lucas 6.14-16) é suficiente para percebermos
que o nome de Bartolomeu aparece associado ao de Filipe; esse fato, endossado
pelas narrativas posteriores da história eclesiástica, nos faz suspeitar de
uma relação próxima entre ambos, precedente à chamada de Bartolomeu ao
discipulado cristão. Se interpretarmos esse relacionamento à luz de João 1.45-46,
onde vemos Filipe buscando testemunhar de Cristo para seu amigo Natanael,
poderemos ter, então, nas figuras de Bartolomeu e Natanael a mesma pessoa.
Embora insuficientes, são essas as únicas sustentações bíblicas que justificam
a alegada fusão dos personagens citados. A despeito de sua fragilidade, essa
hipótese norteará, a seguir, o perfil do apóstolo que enfocamos nesse
capítulo. Desta forma, associaremos, daqui em diante, o nome de Bartolomeu ao
de Natanael.
A Vocação De Bartolomeu
Nos
dias apostólicos, dizia-se em Israel que alguém que costumava descansar sob a
sombra de uma figueira era, certamente, uma pessoa de posses. Embora tenha sido
exatamente essa a situação em que Bartolomeu se encontrava, momentos antes de
ser abordado por Filipe (João 1.48), sugerir algo semelhante acerca do apóstolo
em questão tendo por base apenas essa passagem seria, no mínimo, uma
especulação grosseira. E muito mais provável, entretanto, que Bartolomeu —
assim como a maior parte de seus condiscípulos — tenha desfrutado de uma vida
típica dos galileus habitantes das regiões próximas ao Lago de Genesaré,
marcada pela simplicidade e pelo trabalho árduo.
Como a maior parte dos discípulos, Bartolomeu parece ter
sido um homem profundamente sintonizado com as expectativas messiânicas de sua
época. O notável testemunho de Jesus a seu respeito (João 1.47) deixa
transparecer o perfil de alguém que serviu-se da Lei e dos profetas não apenas
para orientar suas esperanças na gloriosa redenção de Israel, mas também para desenvolver
em seu íntimo uma espiritualidade frutífera, determinada pelas diretrizes da
sabedoria divina, sobre a qual comenta o apóstolo Tiago (Tiago3.17).
"A sabedoria, porém, lá do alto, é primeiramente pura; depois pacífica, indulgente, tratável, plena de misericórdia e de bons frutos, imparcial, sem fingimento."
"A sabedoria, porém, lá do alto, é primeiramente pura; depois pacífica, indulgente, tratável, plena de misericórdia e de bons frutos, imparcial, sem fingimento."
A irônica resposta dada a Filipe (João 1.46), consoante ao
fato de o Messias ser proveniente de Nazaré, não deve ser interpretada como
uma atitude discriminatória de Bartolomeu contra essa pequena cidade da
Galiléia, em cujas proximidades ele próprio nascera. Aqui, o mais provável é
que o futuro apóstolo estivesse externando seu ceticismo diante da
possibilidade de alguém da magnitude do Messias — tal como era aguardado em
Israel — ser procedente de um lugar tão irrelevante e sem nenhuma
representatividade nacional. Sobre esse detalhe, comenta John D. Jones (op.
cit., p. 80).
"Embora grande estudante das Escrituras, Natanael as
enxergava, eu diria, através das 'lentes' rabínicas. Ele aguardava o Messias,
porém aquele por quem esperava certamente não era o Messias descrito como Servo
Sofredor em Isaías 53, um homem de dores e que sabia o que era padecer; Aquele
para quem Natanael dirigia suas expectativas era apregoado pelos 'rabbis' como
um grande príncipe, vestido de púrpura e circundado por toda pompa e esplendor
da realeza."
Se há algo que se pode afirmar sobre Bartolomeu, antes de
sua vocação apostólica, é que se tratava de um homem veraz em seu coração. No
caso do apóstolo, essa virtuosidade pressupõe uma intensa devoção e integridade
religiosa. Isso é o que e pode concluir a partir da observação feita por Aquele
que o separou para o discipulado (João 1.47):
"Jesus, vendo Natanael (Bartolomeu) aproximar-se dele,
disse a seu respeito: Eis um verdadeiro israelita, em quem não há dolo!"
E provável que Jesus, ao Se valer da expressão
"verdadeiro israelita", estivesse tentando avultar não o zelo de
Bartolomeu quanto à observância exterior da Lei, mas sua fidelidade para com os
mandamentos divinos no mais íntimo da alma. Essa expressão nos remete à
Epístola aos Romanos, onde o ex-fariseu Paulo complementa (Romanos 2.28-29).
"Porque não é judeu quem o é apenas exteriormente, nem
é circuncisão a que é somente na carne.
Porém judeu é aquele que o é interiormente, e circuncisão a
que é de coração, no espírito, não segundo a letra, e cujo louvor não procede
dos homens, mas de Deus."
O louvor do qual Bartolomeu foi alvo complementa-se com a
significativa observação em quem não há dolo. No ensinamento contido em Mateus 7.21-23, Jesus refere-Se ao dolo como um dos males originários do coração,
responsáveis pela contaminação do ser humano. O termo grego dolos corresponde
em significado ao seu descendente português, isto é., fraude, astúcia, engano,
maquinação. Na referência a índole de Bartolomeu, Jesus emprega seu equivalente
negativo, a dolos. Essa expressão, ocorre também em 1 Pedro 2.22, onde descreve a
pureza e a perfeição de caráter do Senhor.
Inspirado nas palavras de apreço do Mestre em relação a Seu
futuro discípulo - mas certamente cruzando as fronteiras da conjectura -John D.
Jones concebeu assim o perfil de Bartolomeu (op. cit., p.77, 82):
"A primeira coisa que diria acerca de Natanael é que
era um homem entregue ao estudo, à meditação e à oração. Julgando pelo fato de
seu nome ocorrer na lista daqueles que decidiram retornar, ao lado de Pedro, à
pescaria, deduzo que Natanael, assim como seus irmãos e apóstolos, era
pescador. Contudo, nunca se permitiu absorver por seus negócios. Praticava a
pesca apenas como meio de subsistência, porém seu coração estava voltado para
as coisas lá do alto. Cada momento que podia arrebatar de seus afazeres
diários, ele os devotava à meditação e à oração silenciosa.
Havia, naqueles tempos, um círculo de israelitas cujas almas
estavam voltadas à oração. Homens como Simeão, que ansiava pela consolação de
Israel, e mulheres como Ana, que jamais deixava o templo, onde adorava com
súplicas e jejuns, dia e noite. Natanael era um dos que compunham esse seleto e
consagrado círculo.
No jardim que possuía, junto a sua humilde casa, havia uma
figueira sob a sombra de cujas folhas Natanael passava horas a fio, em clamor a
Deus ou absorvido em estudos sobre os legados de Moisés e dos profetas.
Ele era qual o patriarca Jacó, um príncipe diante de Deus,
no poder de suas orações. Contudo, ao contrário daquele, não tinha em sua
natureza qualquer traço de engano ou sagacidade.
Newman, no segundo volume de seus 'Sermões', nos mostra como
o 'homem sem dolo' é descrito no décimo quinto salmo: 'Então Davi pergunta:
Senhor, quem habitará no teu tabernáculo? Quem há de morar no teu santo monte?
O que vive em integridade e pratica a justiça, e, de coração, fala a verdade; o
que não difama com sua língua, não faz mal ao próximo, nem lança injúria contra
o seu vizinho; o que jura com dano próprio, e não se retrata.' Este é o perfil
de Natanael."
Conquanto fantasiosas em alguns aspectos, as diversas
descrições sobre o ministério pós-bíblico de Bartolomeu, sobre o qual falaremos
adiante, sugerem que o jovem discípulo não poupou esforços para proclamar o
evangelho através de regiões por vezes hostis, freqüentemente longínquas e
quase sempre estranhas a sua terra e sua cultura. Num desses lugares, Bartolomeu,
como muitos dos condiscípulos, parece ter selado com seu próprio sangue o
testemunho de Jesus.
Os vestígios deixados por suas jornadas, ainda que raros,
podem ser mais uma evidência de que as missões apostólicas atingiram, antes do
final do primeiro século, a distante índia, país que, pela dimensão de suas
trevas espirituais, constitui ainda hoje um dos maiores desafios missionários
transculturais.
Bartolomeu Na Ásia Menor
A região da Ásia Menor (atual Turquia) é notoriamente
apontada pela tradição como um dos palcos de maior atuação do apóstolo
Bartolomeu em suas jornadas missionárias.
A obra apócrifa Atos de Filipe, por exemplo, registra a
incursão de Bartolomeu nessa região onde, ao lado de Filipe (provavelmente o
apóstolo), ministrou a Palavra em Hierápolis. Ali, após curar a esposa do
procônsul e conseguir sua conversão, despertou a fúria do magistrado romano que
os teria condenado à morte por crucificação. Filipe parece ter realmente
sofrido o martírio em tal ocasião, como veremos mais adiante, mas Bartolomeu,
por alguma razão desconhecida, obteve a suspensão da pena quando já se
encontrava no madeiro.
Dorman
Newman, historiador cristão do século XVII, comenta em sua obra The Lifes and
Deaths of the Holy Apostles, esse momento extraordinário de Bartolomeu na Ásia
Menor.
"Em Hierápolis, na Frigia, o encontramos em companhia
do apóstolo Filipe (como já fora antes observado em sua vida), diante de cujo
martírio por crucificação, Bartolomeu acabou preso e também condenado à mesma
pena capital. Entretanto, em razão de algo que desconhecemos, os magistrados
interromperam seu suplício e o despediram. Dali, Bartolomeu dirigiu-se à
Licaônia, onde João Crisóstomo afirma ter o apóstolo iniciado muitos na fé
cristã."
A despeito dessa narrativa tradicional, devemos reconhecer
que seria quase um milagre, em tais circunstâncias, a sobrevida de um condenado
ao suplício da cruz. Fixado pelos pulsos e pelos pés ao madeiro com os
terríveis cravi trabales — pregos enferrujados de quase vinte centímetros de
comprimento - o crucificado tinha como destino inevitável o tétano. É bem
verdade que, embora essa tenha sido a maneira mais usual de se perpetrar a
crucificação, houve ocasiões em que se objetivou prolongar ainda mais o
sofrimento dos crucificados. Nesse caso, um dos expedientes utilizados era a
fixação dos sentenciados à cruz com cordas, ao invés de cravos. Embora, nesse
caso, a dor fosse incomparavelmente inferior, o tempo de agonia dos condenados
costumava superar razoavelmente o período de dois a nove dias estimados para a
expiração pelo método mais violento. Se aplicarmos essa possibilidade à
pretensa crucificaçao de Bartolomeu em Hierápolis, devemos atribuir ao milagre
não sua sobrevida após a já iniciada execução, mas sim à inusitada reversão da
sentença por parte dos romanos.
Após a misteriosa libertação, algumas lendas localizam
Bartolomeu na vizinha Licaônia, onde teria anunciado a salvação aos pagãos, bem
como ministrado às congregações cristãs já existentes naquela região.
A longa tradição da Igreja ortodoxa sobre o apóstolo
Bartolomeu tem alguns pontos em comum com as demais, especialmente no que tange
à interrupção de seu martírio ao lado de Filipe. Para ela, ambos apóstolos
operaram sinais poderosos e curaram muitos enfermos. Em certa ocasião, Bartolomeu
e Filipe teriam destruído pelo poder da oração uma terrível serpente,
preservada e cultuada num santuário pagão. Irados, os moradores locais
decidiram executar os apóstolos, crucificando-os. Enquanto os santos sucumbiam
ante a terrível sentença, um grande terremoto teria sacudido a localidade,
fazendo perecer não apenas seus juízes mas também parte da população que
assistia à execução. Cheios de temor diante do ocorrido, aqueles moradores
decidiram, então, libertar imediatamente os apóstolos, mas constataram que
Filipe já havia falecido.
Bartolomeu Rumo Ao Oriente
Vários escritos tradicionais da Igreja, como o apócrifo
Evangelho de Bartolomeu, apresentam o apóstolo como enviado ao Oriente, mais
especificamente à índia, onde teria deixado uma cópia do Evangelho de Mateus,
escrito em hebraico. Acerca dessa possibilidade, comenta o historiador Rufino.
"Panteno, filósofo de formação estóica, segundo
tradições alexandrinas (...) era de tão notória erudição, tanto bíblica como
secular que, atendendo às solicitações das autoridades, foi enviado como
missionário à índia, por Demétrio, Bispo de Alexandria.
Naquele lugar, descobriu que Bartolomeu, um dos doze
Apóstolos, já havia anunciado o Senhor Jesus e difundido o Evangelho de Mateus.
Ao retornar a Alexandria, Panteno trouxe consigo esta obra, escrita em
caracteres hebraicos."
Os ortodoxos também crêem que Bartolomeu exerceu seu
ministério na índia, levando consigo um exemplar do Evangelho Segundo Mateus, a
fim de auxiliá-lo em suas ministrações. Entretanto, o grande obstáculo na
investigação dessa possível jornada reside no próprio significado do termo
índia, deveras abrangente naquela época. Os escritores de língua grega e latina
se valiam, com freqüência, do termo para se referirem a lugares diversos como
a Arábia, Etiópia, Líbia, Partia, Pérsia e Média. No caso específico da viagem
missionária de Panteno, alguns escritores acham mais provável que o nome
"índia" se refira à Etiópia ou, ainda, à Arábia e não ao país que
conhecemos hoje por esse nome. Se estiverem certos, devemos - em função do
relato supracitado - incluir esses dois países no rol das possibilidades
missionárias de Bartolomeu.
Na tentativa de lançar alguma luz sobre a possível missão de
Bartolomeu à índia, o Dr. Edgard Goodspeed comenta em seu livro The Twelve (p.
97,98).
"Ainda que tenhamos em mente que o termo 'índia' era
empregado de uma forma razoavelmente ampla naqueles tempos, a afirmação de que
Bartolomeu lá esteve como missionário, achando um 'Evangelho de Mateus em
Hebraico', faz certo sentido. Eusébio declara, em sua História Eclesiástica
(v.10.12) que, ao tempo da ascensão do imperador Cômodo em 180 A.D., Panteno,
mestre e expoente da Igreja de Alexandria, foi enviado como missionário à
longínqua índia, onde Bartolomeu já havia pregado e deixado um certo Evangelho
de Mateus em língua hebraica (...)."
Chamando índia a uma região que abrangia desde a Etiópia até
a Média, o texto apócrifo O Martírio do Santo e Glorioso Apóstolo Bartolomeu,
acrescenta alguns detalhes que, embora aparentemente imaginários em alguns
momentos, podem constituir a forma exagerada com que antigos cristãos
perpetuaram a possível missão do apóstolo na região.
"Para a índia partiu São Bartolomeu, o apóstolo de
Cristo, alojando-se no templo de Astarote e ali vivendo entre os pobres e
peregrinos. Havia, pois, nesse templo, um ídolo de nome Astarote, que
supostamente curava os enfermos do povo. Mas, na verdade, os enfermava ainda
mais. O povo jazia na total ignorância do Deus verdadeiro. Na busca do conhecimento,
sem contudo ter a quem recorrer, todos se refugiavam no falso deus o qual lhes
trazia problemas, enfermidades, danos, violência e muita aflição. Quando a ele
sacrificavam, o demônio, retirando-se dos enfermos, parecia curá-los. Vendo
estas coisas a população, engodada, continuava a crer nele."
A lenda continua, afirmando que a simples presença de
Bartolomeu naqueles termos acabou suprimindo a atuação demoníaca sobre a
população. Indignados com o silêncio do ídolo ao qual serviam, aqueles homens evocaram
um certo demônio de nome Becher, na tentativa de descobrirem a razão da
impotência de Astarote.
"O demônio Becher respondeu-lhes dizendo: Desde o dia e
a hora em que o verdadeiro Deus, que habita nos céus, enviou seu apóstolo
Bartolomeu a essa região, vosso deus Astarote está aprisionado em cadeias de
fogo, não podendo falar ou mesmo respirar."
De tal sorte a presença de Bartolomeu provocou os fiéis de
Astarote que estes, após as referências dadas pelo demônio, saíram ao encalço
do apóstolo por dois dias inteiros, procurando-o entre os pobres e peregrinos
da cidade, sem contudo encontrá-lo.
Mesmo perseguido pelos adoradores de Astarote, conta a lenda
que Bartolomeu prosseguiu sua missão naquele lugar, curando os enfermos e
libertando os endemoninhados. Essas operações chegaram aos ouvidos de Polímio,
o soberano local, que, afligido pela situação de sua filha, ordenou a imediata
busca pelo apóstolo. Ao ser trazido diante do rei, Bartolomeu comoveu-se com
as súplicas do soberano para que libertasse sua filha da opressão maligna que
a mantinha acorrentada por longos anos. Orando poderosamente, Bartolomeu trouxe
completa libertação para a jovem, muito embora os servos do rei, tomados de
pavor, não ousassem aproximar-se da ex-possessa para soltá-la. O apóstolo,
então, ordenou-lhes.
"Eis que mantenho preso o inimigo dessa alma; estais
vós ainda amedrontados com essa pequena? Ide, soltai-a e, após dardes a ela de
comer, deixai-a descansar."
Profundamente agradecido pelo que lhe fizera Bartolomeu, Polímio
carrega alguns de seus camelos com ouro, prata e pedras preciosas e, a seguir,
ordena que seus servos encontrem e presenteiem o apóstolo com aquela
inestimável fortuna. Entretanto, na manhã seguinte, enquanto ainda lamentava
não poder encontrar o santo de Deus e gratificá-lo com sua riqueza, o rei é
surpreendido em sua câmara pela presença do apóstolo.
"Por que te esforçaste em me buscar ontem por todo o
dia com ouro, prata, pedras preciosas, pérolas e vestimentas? Pelo que, anseiam
por essas coisas aqueles que buscam o que é da terra; mas eis que eu nada busco
de terreno ou carnal."
Recusando
a oferta real, Bartolomeu pede a atenção do soberano por alguns instantes, a
fim de revelar-lhe seu verdadeiro tesouro. Tendo lhe exposto a obra redentora da
cruz, o apóstolo dirigiu-lhe o convite para que recebesse Jesus em seu coração.
"Pelo que, se desejas ser batizado e anelas pela
iluminação, far-te-ei contemplá-Lo e poderás, então, compreender de quão
grandes males foste redimido."
Relutante em seu coração quanto àquela novidade, o rei
desafia Bartolomeu a estar presente, na manhã seguinte, no templo de Astarote,
onde o soberano se juntaria aos demais nas costumeiras oferendas ao ídolo.
Conta a lenda que, ao aceitar o convite e comparecer ao
santuário pagão, Bartolomeu impede, pelo poder de Deus, a manifestação dos
demônios e os desmascara diante de grande multidão de fiéis. Fustigada pela
santa interces-são do apóstolo, uma criatura infernal teria clamado:
"Cessai de ofertar-me, ó vós, miseráveis, para que não
sofrais ainda mais por minha causa, porquanto estou aprisionado em cadeias de
chamas, e mantido em sujeição pelo anjo do Senhor Jesus Cristo, o Filho de
Deus, aquele a quem os judeus crucificaram,"
Desejoso de que todos os presentes fossem definitivamente
esclarecidos, Bartolomeu conjura o demônio a que fale a verdade acerca do ídolo
venerado por todos naquele lugar.
"Confessa, ó demônio imundo, quem é o que fere todos
estes que aqui jazem pesadamente enfermos! O demônio então respondeu: O diabo,
nosso guia, que está aprisionado; ele nos manda para que venhamos contra os
homens e, primeiramente ferindo seus corpos, tomemos de assalto suas almas
quando sacrificam a nós. Assim, ao crerem em nós e nos trazerem ofertas, temos
poder sobre eles."
Tendo apresentado a verdade à multidão, Bartolomeu, com
grande autoridade, conclama os presentes a crerem no nome de Jesus e a serem
batizados nessa fé. Narra a lenda que, por toda a região, se fizeram sentir os
efeitos da mensagem e do testemunho do apóstolo naquele lugar:
"Eis que o rei, a rainha, seus dois filhos e toda sua
gente, bem como toda a multidão da cidade e das cidades e terras vizinhas e das
demais regiões sobre as quais reinavam, creram, foram salvos e batizados em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. O rei, tendo deixado sua coroa,
seguiu os passos de Bartolomeu, o apóstolo de Cristo."
Bartolomeu, o Iluminador da Armênia
Conquanto careça do respaldo de escritores primitivos, a
crença de que Bartolomeu figura entre os fundadores da Igreja armênia tornou-se
influente com o passar dos séculos.
Apoiados em diversas lendas — algumas das quais atribuídas a
Jerônimo — autores como William Barclay sugerem que após o período de
ministração na Ásia Menor e na região imprecisa denominada índia, Bartolomeu
teria seguido em viagem às terras da Armênia, onde aliou-se ao apóstolo Judas
Tadeu em meados de 60 A.D. Ali, no decorrer de um ministério de mais de
dezesseis anos e em meio a uma abominável idolatria, Bartolomeu operou a cura
miraculosa da filha de um certo rei, expondo a inoperância do poste-ídolo
adorado pelo soberano e seus súditos. Conta ainda a tradição que, durante a
ministração do apóstolo, um anjo teria expulsado o demônio flamejante que
habitava o interior do ídolo, diante dos olhos atônitos da população. O rei e
muitos de seus súditos foram, conseqüentemente, batizados, suscitando a ira do
irmão do soberano, Astiages, e de toda a classe sacerdotal paga. Após definirem
como o matariam, Astiages e aqueles líderes religiosos arrebataram Bartolomeu
e, escalpelando-o vivo, o crucificaram de cabeça para baixo.
Lendas semelhantes, conservadas pelos ortodoxos, afirmam que
Bartolomeu não pode livrar-se da ira de um certo rei armênio, nem mesmo após
ter curado a loucura de sua irmã. Enfurecido com a presença do apóstolo, o rei
teria ordenado sua crucificação e sua posterior decapitação.
Como veremos adiante, as tradições mais fortes apontam a
cidade de Albana como o cenário do martírio de Bartolomeu.
Mesmo que as narrativas tradicionais tenham, com o passar
dos anos, romanceado ou acrescentado fábulas ao ministério do jovem discípulo,
o fato é que tanto Bartolomeu como Judas Tadeu são considerados popular-mente
os fundadores da Igreja armênia. Tal tradição, por ser milenar, merece
cuidadosa atenção. O Patriarcado Armênio de Jerusalém, num tratado sobre o
assunto, resume.
"O indestrutível e duradouro amor dos armênios e sua
devoção pela Terra Santa têm seu início no primeiro século da era Cristã,
quando o cristianismo foi trazido diretamente deste lugar pelos apóstolos São
Tadeu e São Bartolomeu. A Igreja que fundaram tornou-se responsável pela
conversão de grande parte da população ao longo do segundo e terceiro séculos.
No começo do quarto século, em 301 A.D., através dos esforços de São Cregório,
o lluminador, o rei armênio Tiridates, o Grande, e todos os membros da realeza
converteram-se e foram batizados."
Sobre o ministério apostólico de Bartolomeu na Armênia, Aziz
Atiya afirma, em seu livro A History of Eastern Christianity (p. 316).
"Os primeiros lluminadores da Armênia foram São Tadeu e
São Bartolomeu, cujos santuários ainda permanecem de pé em Artaz (Macoo) e
Alpac (Bashlake), no sudeste da Armênia, sendo há muito tempo venerados pelos
armênios.
Uma tradição popular entre eles atribui a primeira
evangelização da Armênia ao apóstolo Judas Tadeu que, segundo sua cronologia,
lá permaneceu entre os anos 43 e 66 A.D., sendo, a partir de 60 A.D.,
acompanhado por Bartolomeu, cujo suplício deu-se em 68 A.D. na localidade de Albanus
(Derbent)".
Atualmente, a antiga cidade de Albanópolis (também chamada
Albana ou Albanus), apontada pela tradição como local do suplício de
Bartolomeu, recebe o nome de Derbent. Localizada ao sul da Federação Russa,
Derbent está situada próxima à fronteira com o Azerbaijão, na costa oeste do
Mar Cáspio. No passado, devido a sua posição estratégica, a região foi um
corredor geográfico por onde passaram, em direção às civilizações ocidentais,
cavaleiros bárbaros procedentes geralmente das estepes asiáticas.
A tradição apostólica, embora passível de significativas
distorções, parece não ter se equivocado ao afirmar que o evangelho atingiu a
Armênia no princípio da Era Cristã. Em fins do terceiro século, Gregório, o
Iluminador — outra figura preponderante na evangelização da Armênia — deve ter
encontrado ali algum resquício do trabalho realizado por Bartolomeu e Judas
Tadeu, tal a facilidade com que difundiu a fé cristã naquele país. Sua missão,
com a qual logrou a conversão do rei Tiridates, abriu novas portas para a
cristianização do país, de sorte que a Armênia tornou-se, em meados do quarto
século, a primeira nação na História a proclamar-se oficialmente cristã.
O Patriarcado Armênio de Jerusalém se orgulha em citar o
caso de Macário, Bispo de Jerusalém (séc. IV), que teria mantido uma estreita
comunhão com aquela comunidade oriental. Entre 325 e 335 A.D., numa de suas
cartas ao bispo armênio Vertanes, Macário, além de tratar de vários assuntos de
interesse eclesiástico, saúda o ministério pastoral assim como todos os crentes
daquele lugar, sugerindo a existência de uma Igreja muito bem disseminada entre
a população local. Aliás, no princípio do século seguinte, cem anos após a
missão de Gregório, a população armênia já somava mais de dois milhões de
cristãos, transformando o país num dos principais centros do cristianismo no
mundo de então!
Assim como seu ministério, as características físicas de
Bartolomeu também foram alvo de especulações tradicionais. A curiosa descrição
do apóstolo encontrada no livro A História Apostólica de Abdias apresenta
alguns detalhes fantasiosos; entretanto, pode conter traços daquilo que
realmente constituiu o retrato do jovem missionário:
"[Bartolomeu] Tinha os cabelos encaracolados e negros,
que cobriam as orelhas. Sua pele era clara, seus olhos grandes e seu nariz reto
e comprido. A barba era longa e grisalha e sua estatura mediana.
Vestia roupas brancas e cingia-se com uma cinta púrpura,
tendo sobre si um manto branco com quatro pedras preciosas de cor púrpura em
seus cantos. Durante vinte e seis anos as vestiu sem que sequer ficassem
velhas. Assim, também, suas alparcas por vinte e seis anos perduraram.
Orava cem vezes ao dia e cem vezes à noite. Sua voz era como
de uma trombeta e anjos velavam sobre ele. Era sempre jovial e conhecia todas
as línguas."
Os Restos Mortais
Se os relatos tradicionais não se mostraram precisos quanto
ao ministério de Bartolomeu, pode-se afirmar o mesmo acerca do verdadeiro
local de seu descanso, também alvo de um sem número de narrativas divergentes,
das quais poucas transmitem alguma credibilidade.
Otto Hophan, em seu livro The Apostles (p. 167), apoia as
tradições armênias acerca do paradeiro dos restos de Bartolomeu.
"A tradição armênia sustenta que o corpo do apóstolo
foi sepultado em Albanópolis (ou Urbanópolis), cidade da Armênia onde é tido
como martirizado. Dali, seus restos mortais foram levados a
Nefergerd-Mijafardin e, posteriormente, a Duras, na Mesopotâmia."
A condução dos restos do apóstolo para a Mesopotâmia surge
como um ponto comum entre muitas das lendas sobre as relíquias de Bartolomeu.
Não obstante, a autora católico-romana Mary Sharp, em seu A Traveller's Guide
to Saints in Europe (p. 29), mostra que a Mesopotâmia não deve ter sido o paradeiro
final das relíquias de Bartolomeu, conforme narram alguns textos antigos:
"Um relato nos diz que, após o imperador Anastácio
construir a cidade de Duras, na Mesopotâmia em 508 A.D., para lá foram levados
os restos mortais de Bartolomeu. Entretanto São Cregório de Tours afirma que,
antes do fim do sexto século, o que restou do apóstolo teria sido levado às
Ilhas Lipari, próximas da Sicília. Já Anastácio, o Bibliotecário, conta que ano
809 A.D. os restos de Bartolomeu foram levados até Benevento e de lá para Roma,
em 983 A.D., pelo imperador Otto III. Atualmente, repousam na Igreja de São
Bartolomeu-Sobre-o-Tibre num santuário pórfiro sobre o altar. Um dos braços
foi enviado pelo Bispo de Benevento a Eduardo, o Confessor, que o doou à
Catedral da Cantuária."
Se os restos de Bartolomeu foram realmente trasladados desde
a Mesopotâmia até seu destino final em Roma, como afirmam alguns autores
católicos, não o sabemos com certeza. A presença do apóstolo na Armênia parece
muito provável, dada a quantidade de tradições distintas que a confirmam. O
posterior transporte de seus restos para a vizinha região da Mesopotâmia também
encontra eco em muitos relatos antigos. Porém, quanto ao mais, devemos ter em
mente que, ao longo de toda a Idade Média, a supremacia absoluta da Igreja
romana tratou de estimular o surgimento de lendas ligando o paradeiro das
relíquias apostólicas à capital do império. Tal tendência, por si mesma, nos
obriga a abordar com todo cuidado as tradições que sustentam o envio indiscriminado
de restos apostólicos para Roma.
Por outro lado, o cristão de origem ortodoxa, por certo, se
identificaria muito mais com o relato de John Julius Norwich, em seu livro
Mount Athos (p. 142), Na obra, Norwich descreve sua saga ao Hagion Oros (Monte
Santo), como os gregos o chamam, uma montanha de quase dois mil metros, onde
muitos de seus vinte mosteiros ortodoxos da ordem de S. Basílio conservam
silenciosamente um raro exemplo da beleza arquitetônica bizantina. Ali, em meio
a uma atmosfera que remonta aos dias medievais, o autor afirma ter sido
conduzido por um monge aos restos mortais do apóstolo Bartolomeu, assim como
aos de Dionísio, o Areopagita, o personagem convertido por Paulo em Atenas (Atos 17.34).
Abraços e fique na paz do Senhor Jesus Cristo.
Neander Silvestre.
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